Fernando Pessoa e a escravatura



Não obstante ter ficado demonstrado, do ponto de vista ideológico e das suas convicções politicas, que Fernando Pessoa era um livre-pensador liberal (ver José Barreto), o poeta não deixa de ser um elitista que desprezava os operários e defendia a escravatura. Um muito interessante texto da autoria de Richard Zenith refere-se directamente a esse assunto:

Fernando Pessoa, sem pudor e sem remorso, era um elitista. Era-o política, sociológica e literariamente. Claro que há elitistas e elitistas... Desde que os ideais de liberté, egalité, fraternité, começaram a expandir-se no século XVIII, houve quem achasse, como Voltaire, que a noção de igualdade entre os homens era uma quimera, apenas se podendo, e devendo, defender uma igualdade de direitos. Nem isto Pessoa defenda. “Para que serve a liberdade às plebes?”, pergunta Ricardo Reis (Ricardo Reis/Prosa, 2003, pp. 128-129) [...] Tanto Reis como António Mora [...] defendem a instituição da escravatura na Antiguidade (ibid., p. 125; Obras de António Mora, 2002, p. 261) e a existência, modernamente, de uma classe “económica de compelidos ao trabalho quotidiano e manual” (Ricardo Reis/Prosa, 2003, p. 128). Álvaro de Campos, depois de ter proposto, no Ultimatum, a dominação da humanidade por um pequeno número de “super-homens”, explica numa “entrevista” que os operários, os quais “são todos uns idiotas”, deveriam ser “reduzidos a uma condição de escravatura ainda mais intensa e rígida que aquilo a que eles chamam a ‘escravatura’ capitalista” (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, 1966, pp. 419 e 423). 
[...] Atitudes heteronímicas? Não só. Num artigo publicado em 1919 (A Opinião Pública), Pessoa mostra-se favorável à aristocracia e à escravidão das democracias antigas, que assim ficaram ‘vacinadas’ contra um ‘grande número de doenças sociais’, e num texto para um ensaio sobre a conveniência do imperialismo para a não escreveu: ‘ A escravatura é lógica e legítima; um zulo ou um ladim não representa coisa alguma de útil neste mundo’ (Sobre Portugal, 1979, pp. 216-217). Um outro texto ortónimo explica-nos por que razão ‘uma pedra é mais interessante que um operário’ (Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, 2003, p. 374).

Richard Zenith, “O barbeiro, a costureira, o moço de fretes e o gato”, in in A Arca de Pessoa (org. Steffen Dix e Jerónimo Pizarro), Lisboa, ICS, 2007, pp. 295-296.

Na imagem: Fernando Pessoa (interpretado por Rui Mário) e Álvaro de Campos (interpretado por André Gago). Cena do filme “Poesia de Segunda Categoria”